Os cariocas e turistas de passagem pelo Balneário de São Sebastião neste verão inclassificável de tão quente podem assistir, até o próximo dia 23, o musical Martinho: Coração de Rei. O espetáculo, dirigido por Miguel Falabella, com a dramaturgia de Helena Theodoro, grande referência brasileira na pesquisa sobre a cultura negra, é baseado na vida de um símbolo de Duas Barras, do Rio de Janeiro, de(a) Vila Isabel e do Brasil: Martinho José Ferreira, o Martinho da Vila.
É claro que escrevo este texto ainda sob os afetos vividos no Teatro Riachuelo, onde o espetáculo está em cartaz. Não quero e nem pretendo dar spoiler a quem me lê, porém a obra, como é de se imaginar, passa pela vida de Martinho, desde sua concepção (antes do nascimento), no interior fluminense, até os dias atuais, nos quais ele nos brinda com a sapiência dos 87 anos completos nesta quarta-feira, dia 12.
Ao sair do teatro, passei uns dias refletindo sobre como a obra viva de Martinho da Vila nos ensina. Seja nas letras de seus sambas, nas páginas de seus romances e contos (estes, casos à parte), seja pelo seu modo característico de viver, pelo que discursa ou pratica, Martinho parece múltiplo. Um intelectual do campo, da favela e do mundo que educa o Brasil. Senão vejamos com alguns exemplos que mostro a seguir, resumidíssimos se colocados em perspectiva com a enorme obra do artista.
Ainda na fase inicial de sua trajetória, em Batuque na Cozinha (1972), letra de João da Baiana1, a interpretação de Martinho trouxe à memória aquilo que o Brasil foi no passado e que nunca deixou de ser no presente. Um país onde as festas dos pretos em diáspora são violentadas, perseguidas e, muitas vezes, proibidas: Batuque na Cozinha, Sinhá não quer / Por causa do batuque eu queimei meu pé. Cantando uma referência (in)direta ao tratamento desumanizado ao que os negros eram submetidos no período da escravatura oficial brasileira, naquilo que as sinhás e os senhores de engenho entendiam como desobediência na Casa Grande, Martinho é historiador.
Depois que Martinho lançou Disritmia (1974), pudemos aprender que o olhar da pessoa amada pode acelerar os batimentos do coração, mas também colocar sua frequência rítmica no eixo: Eu quero ser exorcizado pela água benta desse olhar infindo / Que bom é ser fotografado / Mas pelas retinas desses olhos lindos / Me deixe hipnotizado pra acabar de vez com essa disritmia. Ou seja, quando diagnostica tão simbolicamente o avassalador efeito de uma paixão, Martinho é poeta.
Neste mesmo ano, com Festa de Umbanda, é possível compreender como Martinho abriu espaço a uma minoria marginalizada, os religiosos de matriz africana, em um contexto de ditadura civil-militar hipócrita e em pleno funcionamento. Repito: o ano era 1974. Mesmo no caso dele, um ex-sargento do Exército, era preciso coragem para cantar O sino da Igrejinha faz belém blem blam / Deu meia-noite, o galo já cantou / Seu Tranca Rua que é dono da gira / Oi corre gira que Ogum mandou. Ao gravar um ponto de umbanda, reafirmando sua religiosidade, Martinho apoiou milhares de brasileiros que não tinham plena liberdade de crença (tal como hoje, mas isso é outro papo). E ainda neste contexto de repressão, lançou Canta Canta, Minha Gente, canção que dá nome ao LP e que é uma ode à esperança em um período sombrio: Canta canta, minha gente / Deixa a tristeza pra lá / Canta forte, canta alto / Que a vida vai melhorar. Aqui Martinho é revolucionário.
Um ano depois, em 1975, com o lançamento de Você Não Passa de Uma Mulher, podemos pressupor que o machismo é uma postura intrínseca na sociedade brasileira que não isenta nem mesmo as mentes mais privilegiadas: Mulher preguiçosa, mulher tão dengosa, mulher / Você não passa de uma mulher. A letra, ao relegar a mulher a uma posição subalterna, mostra que todos os homens são frutos de seu tempo. Talvez a grande pergunta que fica da canção machista é: o que nós, homens, estamos fazendo com o tempo que temos? Pararemos nele ou forçaremos uma (r)evolução? Aqui Martinho é humano.
Aí damos um pequeno salto com Salgueiro na Avenida (1983). Uma canção que choca pela ludicidade com que Martinho versa sobre uma fase traumática na vida de muitas adolescentes e pais: a puberdade. Com uma poética incrível, ele simplifica o período menstrual usando a história de uma de suas filhas, Juliana: 82, dezembro, 17 / Pela vez terceira a história se repete / Desta vez com a Juca, a Juju, Juquinha / Minha Juliana ficando mocinha / É um corre corre, é um pula pula / É o Salgueiro que pintou na avenida / Mas que bonito, ela já ovula / Daqui pra frente marcas no papel / Todo mês Salgueiro / Todo mês São Carlos / Todo mês Unidos de Padre Miguel / Até que um dia não haja desfile / Um sinal de vida, netinho ou netinha / Pro vovô Martinho, pra vovó Rucinha. Ao tranquilizar a família sobre a chegada da menstruação, Martinho é psicólogo.
À Kizomba, Festa da Raça, enredo fruto de sua mente criativa que deu a Unidos de Vila Isabel seu primeiro Carnaval, em 1988, no Centenário da Abolição, coube a reflexão e a derrubada do retrato estereotipado da África. Porque o Continente Mãe não é só a dor da exploração, mas também lugar de intercâmbio de conhecimento, luta, fé e celebração: Sacerdote ergue a taça / Convocando toda a massa / Neste evento que congraça / Gente de todas as raças / Numa mesma emoção / Esta Kizomba é nossa Constituição / Que magia, reza, ajeum e orixás / Tem a força da cultura / Tem a arte e a bravura / E um bom jogo de cintura faz valer seus ideais / E a beleza pura dos seus rituais2. Com este enredo, Martinho fez a grande travessia inversa, do Brasil ao outro lado do Atlântico, retornando à Angola. Aqui Martinho é embaixador.
Logo depois, com Madalena do Jucu (1989), Martinho ensina que, às vezes, cabe aos filhos enfrentar as contradições dos pais para crescer e tomar as decisões que devem ser tomadas: O meu pai não quer que eu case / Mas me quer namorador / Eu vou perguntar a ele / Eu vou perguntar a ele / Por que ele se casou. Quando ele, em forma de samba, reafirma que nem sempre os mais velhos estão certos e que a maturidade é uma conquista que também passa pelo questionamento, Martinho é educador.
Já com Devagar, Devagarinho (1995), de Eraldo Divagar3, Martinho adapta a letra a si e fala da importância de conhecer seus limites. Uma canção que casa perfeitamente com o intérprete, uma vez que descreve uma vida levada na flauta, com seu inconfundível estilo contemplativo, calmo e malandreado. Martinho ensina que os dias passam rápido demais e que correria e sisudez não combinam com uma boa existência: Sempre me deram a fama de ser muito devagar / E desse jeito vou driblando os espinhos / Vou seguindo o meu caminho / Sei aonde vou chegar. Cantando estes versos, Martinho é griô.
E como último exemplo cito A Vila Canta o Brasil, Celeiro do Mundo - Água no Feijão que Chegou Mais Um, de 2013, onde Martinho e uma turma de craques do Carnaval dão uma aula sobre o valor da terra, do trabalho e da solidariedade. Um samba-enredo que alguns esperavam que fosse exaltar grandes proprietários de terra e que foi subvertido em defesa da reforma agrária e da agricultura familiar, elementos sob constante ataque no Brasil: Pinga o suor na enxada / A terra é abençoada / Precisa investir, conhecer, progredir, partilhar, reformar4, proteger5. Aqui Martinho é político.
E o melhor é que o homem segue produzindo. Com a Negra Ópera, venceu o Grammy Latino em 2023 e tudo indica que não deve parar por aí. Por essas e muitas outras que devemos celebrar a enorme carreira e a multiplicidade deste monstro sagrado da cultura. Lendário e Humano. Nascido em Duas Barras, cidadão do mundo, Martinho José Ferreira é de(a) Vila Isabel, do Rio de Janeiro e do Brasil. Segue ensinando e fazendo a vida valer a pena em cada verso, cada batucada. Sabedoria compartilhada da qual nosso país deve desfrutar e se orgulhar. Aqui Martinho é gênio.
Batuque na Cozinha | Álbum: Batuque na Cozinha | Gravadora: RCA Victor | Ano: 1972 | Intérprete: Martinho da Vila | Compositor: João da Baiana | Fonte: www.immub.org
Kizomba, Festa da Raça | Álbum: Sambas de Enredo das Escolas de Samba do Grupo 1A | Gravadora: BMG-Ariola | Ano: 1988 | Intérprete: Gera | Compositores: Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila | Fonte: www.immub.org
Devagar, Devagarinho | Álbum: Tá delícia, Tá gostoso | Gravadora: Columbia | Ano: 1995 | Intérprete: Martinho da Vila | Compositor: Eraldo Divagar | Fonte: www.immub.org
Em entrevista à TV Globo, Martinho disse que desejava usar o verbo reformar no samba-enredo. Mas, a despeito do seu desejo, a letra ficou com o verbo partilhar. Decidi, então, dar-lhe a reparação histórica.
A Vila Canta o Brasil, Celeiro do Mundo - Água no Feijão que Chegou Mais Um | Álbum: Sambas de Enredo das Escolas de Samba do Grupo Especial - Carnaval 2013 | Gravadora: Universal Music | Ano: 2013 | Intérprete: Tinga | Compositores: Martinho da Vila, André Diniz, Arlindo Cruz, Tunico da Vila e Leonel | Fonte: www.immub.org
Grande resenha meu amigo. Parabéns pelo texto, excelente!
Que linda homenagem ao Martinho!
Ele é um cara incrível! E realmente, múltiplo!